terça-feira, dezembro 12, 2006

Regras

Por vezes, critica-se uma pessoa por não estar integrada socialmente ou não obeceder a certos preceitos que se tem como regras da sociedade. Daqui resulta que quem faz esta crítica toma os valores como relativos e criados por uma determinada sociedade num determinado momento; deste modo, a sociedade imporia ou estabeleceria por convenção tácita um conjunto de regras que restringiria as acções dos seus membros, encarando a vida como um jogo para o qual seriam feitas regras que todos teriam de obedecer. É possível que as coisas funcionem assim, mas isto revelaria um certo masoquismo por parte do Homem e eu não sou tão descrente na nossa raça a ponto de achar que a sociedade iria impor a si mesma regras que lhe retirariam liberdade. Assim, acredito que, tal como fenómenos da natureza ocorrem devido à existência de regras físicas, químicas e outras regras não criadas pelo Homem, também as consequências dos nossos comportamentos se devem a regras preestabelecidas e exteriores ao Homem. Um exemplo: parece-me mais provável ser incorrecto roubar ou matar porque há algo exterior ao Homem que determinou que assim fosse, do que a sociedade tenha determinado que o Homem ia sofrer quando o roubassem ou matassem; não é provável e não vejo nenhum indício que mostre que o Homem tem o poder de determinar o que causa sofrimento e o que não causa. Fazendo o paralelismo com o mundo da Química, o Homem pode acender um fósforo, atirá-lo para gasolina e fazê-la arder; mas não pode esperar que, atirando o fósforo, a gasolina não arda. Assim, o que defendo não é o determinismo; o Homem pode escolher o que faz, mas as regras que determinam o que está certo e as consequências dos actos praticados são exteriores a nós.
Caso seja mesmo assim, devemos ser livres para praticar o que está correcto, segundo normas não criadas pela sociedade, e para deixar de praticar o que não está correcto, seja defendido pela sociedade no geral ou não. Pode-se comprovar que nem sempre a generalidade das pessoas tem razão e um desses casos foi a vitória do partido nazi nas eleições; é que, ao contrário de outros ditadores que ocuparam o poder através de golpe de Estado, Hitler foi eleito democraticamente, em coligação com outro partido. Por outro lado, se nos guiássemos sempre por padrões de normalidade e não por valores exteriores à sociedade, provavelmente ainda seríamos caçadores-recolectores, pois não teria havido génios que destoassem, descobrindo leis da natureza e inventando instrumentos que nos permitem ter hoje o conforto que temos.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Droga e crítica

A droga é um dos problemas mais discutidos da sociedade e é encarado como um dos mais importantes. Aqueles que a ela cedem são desconsiderados pela sociedade no geral, partindo-se do princípio que a droga é má. Ora, ela é má pois traz infelicidade às pessoas e parece-me que é isto que define o mau. Trazendo infelicidade às pessoas, aquele que a consome vai querer por si separar-se da sua dependência, mesmo que só tenha percebido as consequências negativas já depois de consumir. Assim, parece-me desnecessário criticar o dependente e pressioná-lo em demasia, pois ele quer libertar-se da sua dependência. A função da crítica, tal como noutro texto referi acerca das penas, é fazer com que o receptor e aqueles que têm conhecimento dessa crítica aprendam e possamos todos viver harmoniosamente em sociedade; a sua função não é castigar. Punir só por si não tem utilidade alguma, é pura vingança. Assim, a partir do momento em que o indivíduo reconhece sinceramente o seu erro, perante a sociedade e principalmente perante si mesmo, a pena ou a crítica tornam-se desnecessárias; a partir deste momento o perdão toma o lugar da crítica, já que esta não é mais precisa. Tudo isto partindo do princípio de que a droga é má. Se, pelo contrário, se partir do princípio de que a droga é boa também não há razão para criticar quem a consome. Deste modo, a crítica é dispensável em ambos os casos, o que não invalida que se alerte para os malefícios da droga no corpo, pois isso não é crítica, é informação. Aquilo que disse sobre a droga penso aplicar-se a outras áreas dos costumes. Pode-se criticar certos costumes, mas sem perder de vista os fins de tal reparo, de maneira a que ele não se torne contraproducente e não provoque mais revolta e sentimento de injustiça no seu destinatário do que o faça aperceber-se do seu erro.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Pigmalião

Porque as havia visto levar a vida entregues ao crime,
ofendido pelos vícios que a natureza deu em abundância
à alma feminina, Pigmalião vivia celibatário, sem esposa,
e há muito não tinha companheira em seu leito.
esculpiu então talentosamente e com admirável arte uma estátua
de níveo marfim e emprestou-lhe uma beleza com que
mulher alguma pode nascer. E enamorou-se da sua obra.
O rosto é de autêntica donzela, que se poderia julgar que vive
e, se o respeito se não constituísse em óbice, que quer mover-se,
a tal ponto a arte se esconde na sua arte.
Pigmalião olha-a com espanto e haure em seu peito
as chamas de um corpo fingido. Muitas vezes aproxima a mão
para tocar sua obra, saber se aquilo é um corpo ou se é marfim,
e não reconhece que ainda é marfim. Beija-a
e julga que os beijos são retribuídos. Fala-lhe, agarra-a,
e crê que os dedos se afundam nos membros que tocam,
e receia que os membros agarrados se manchem de negro.
Ora usa de carícias, ora lhe oferta presentes
de que as donzelas gostam: conchas, pedrinhas polidas,
pequeninas aves, flores de mil cores e lírios, esferas pintadas
e lágrimas caídas da árvore das Helíades.
Também lhe recobre de vestidos o corpo. Adorna-lhe os dedos
com jóias, enfeita-lhe o pescoço com longos colares, nas orelhas
elegantes pérolas, pendem-lhe de peito cordões. Tudo nela fica bem.
E nua não parece menos bela.
Deita-a num leito recoberto de púrpura, chama-lhe esposa
e, inclinando-lhe o pescoço, reclina-a em suaves penas, como se as [sentisse.
Havia chegado o dia das festividades de Vénus, o mais celebrado
em toda a ilha de Chipre. Atingidas em sua nívea cerviz,
haviam sido imoladas novilhas de recurvos chifres dourados,
o incenso exalava-se no ar quando, tendo-se desempenhado
do dever da oferenda, se deteve diante do altar e, timidamente:
"Se tudo podeis conceder, ó deuses, desejo que seja
minha esposa...", não ousando dizer "...a donzela de marfim",
Pigmalião disse: "uma igual à de marfim".
Dado que a dourada Vénus assistia em pessoa às festividades
em sua honra, percebeu o que pretendiam aqueles votos
e, como presságio de divindade amiga, por três vezes
se acendeu a chama e elevou às alturas a língua de fogo.
Ao voltar, Pigmalião dirigiu-se à estátua da sua amada
e, reclinando-se no leito, beijou-a. Pareceu-lhe estar quente.
Aproxima outra vez a boca e, com as mãos,
toca-lhe também o peito. Ao ser tocado, o marfim
torna-se mole e, perdendo a dureza sob os dedos, cede-lhes,
como a cera do Himeto amolece ao Sol e, manuseada pelo polegar,
se molda em formas diversas e se torna útil pelo mesmo uso.
Enquanto fica espantado e se alegra de modo duvidoso
e receia enganar-se, de novo enamorado, toca outra vez
com a mão o seu desejo. Era um corpo. As veias palpitam
sob o polegar. Então o herói de Pafo pronunciou palavras
plenas de eloquência com que deu graças a Vénus.
Por fim beijou com sua boca uma boca não fingida.
A donzela sentiu os beijos que lhe eram dados e corou.
E, erguendo seu tímido olhar para os olhos dele,
de par com o céu viu o seu enamorado.
A deusa assistiu à boda, que organizou.
E depois de os cornos da Lua se unirem
por nove vezes em círculo completo,
aquela gerou Pafo, de quem a ilha tirou o nome.

Metamorfoses, Ovídio (trad. Domingos Lucas Dias)

domingo, dezembro 03, 2006

Futebol-espectáculo

Na sequência da Bola de Ouro atribuída a Cannavaro, defesa-central do Real Madrid e da selecção de Itália, venho fazer a defesa do futebol-espectáculo. Este grande jogador foi, assim, coroado com um justo prémio pelo contributo que deu à selecção de Itália no Mundial e, sem o qual, dificilmente aquela selecção teria sido campeã. A par dele encontra-se Pirlo, jogador tecnicamente mais refinado, mas também defensivo, cujo contributo foi também fundamental. Mais nenhum jogador italiano se destacou dos outros (à excepção talvez de Grosso, outro defesa). Totti é um jogador de excepção mas esteve relativamente apagado no Mundial, para onde foi após meses de paragem e uma recuperação em tempo recorde; assim a Bola de Ouro não lhe poderia ser atribuída. Do lado da França, finalista da competição, poderia a Bola ser atribuída a Zidane, mas este foi expulso na final, o que complicaria a sua eleição. De resto, Malouda, Ribery e outros defesas da França poderiam receber também a Bola de Ouro (como Thuram, por exemplo); Henry foi o melhor marcador da liga inglesa, mas esteve também relativamente apagado no Mundial. Quanto a Ronaldinho, fez uma grande época no Barcelona, mas na selecção do Brasil não mostrou o seu valor e, após ter ganho nos dois anos anteriores a votação sem ter ganho um título internacional, julgo que seria excessivo atribuir-lhe o prémio pela terceira vez consecutiva. De todos, pelo que fizeram ao longo da carreira e nesta época em particular, parece que a escolha justa seria entre Cannavaro e Pirlo. Cannavaro foi escolhido, o que, sendo ele defesa, motivou um coro de protestos, tal como já o futebol praticado no Mundial havia provocado. Diz-se que esta eleição é um atentado ao futebol-espectáculo; pois eu considero que os defesas também jogam e também têm o seu mérito, por vezes pouco reconhecido. Certo que a essência do futebol é o golo, mas este apenas é belo quando construído com mérito e se conseguido após contornar difíceis obstáculos; acho que seria para mim enfadonho ver um jogo que terminasse 11-10, cheio de falhas defensivas enervantes e escusadas, não acharia isto futebol espectáculo. Espectáculo é ganhar usando a melhor estratégia possível e ganhar usando a cabeça e não apenas as pernas. Espectáculo é melhorar e aperfeiçoar o jogo da equipa, até as falhas estarem reduzidas ao mínimo e que quando ocorram (porque os jogadores não são máquinas) a equipa esteja organizada e saiba compensá-las. Mas também o é boas jogadas de combinação no ataque que sejam objectivas e resultem em golo e é também ver que todos os jogadores são importantes e que todos se divertem e não apenas dois ou três em onze que jogam com egoísmo e fazem a equipa perder a bola, sem resultados positivos por mais destreza e perícia que tenham. Para mim, este foi o melhor Mundial a que assisti, pois as equipas que atingiram as meias-finais pouco erraram e é essa, quanto a mim, a beleza do futebol; o belo é o bom e o eficaz. Ainda em relação a Cannavaro, diz-se que é injusto que tenha ganho e Baresi, líbero refinado tecnicamente, não; ora, não é porque antes os defesas eram desconsiderados que, por essa razão, devem continuar a ser; se antes se cometeu uma injustiça que agora se mude de atitude e não se diga "se aquele não ganhou, então este também não ganhará", pois isto teria sido não só injusto para Baresi, como também agora para Cannavaro e nunca nada seria mudado neste aspecto. Os defesas também jogam, vão tendo uma importância crescente nas estratégias e acho correcto que o seu papel seja valorizado consoante merece.