segunda-feira, dezembro 04, 2006

Pigmalião

Porque as havia visto levar a vida entregues ao crime,
ofendido pelos vícios que a natureza deu em abundância
à alma feminina, Pigmalião vivia celibatário, sem esposa,
e há muito não tinha companheira em seu leito.
esculpiu então talentosamente e com admirável arte uma estátua
de níveo marfim e emprestou-lhe uma beleza com que
mulher alguma pode nascer. E enamorou-se da sua obra.
O rosto é de autêntica donzela, que se poderia julgar que vive
e, se o respeito se não constituísse em óbice, que quer mover-se,
a tal ponto a arte se esconde na sua arte.
Pigmalião olha-a com espanto e haure em seu peito
as chamas de um corpo fingido. Muitas vezes aproxima a mão
para tocar sua obra, saber se aquilo é um corpo ou se é marfim,
e não reconhece que ainda é marfim. Beija-a
e julga que os beijos são retribuídos. Fala-lhe, agarra-a,
e crê que os dedos se afundam nos membros que tocam,
e receia que os membros agarrados se manchem de negro.
Ora usa de carícias, ora lhe oferta presentes
de que as donzelas gostam: conchas, pedrinhas polidas,
pequeninas aves, flores de mil cores e lírios, esferas pintadas
e lágrimas caídas da árvore das Helíades.
Também lhe recobre de vestidos o corpo. Adorna-lhe os dedos
com jóias, enfeita-lhe o pescoço com longos colares, nas orelhas
elegantes pérolas, pendem-lhe de peito cordões. Tudo nela fica bem.
E nua não parece menos bela.
Deita-a num leito recoberto de púrpura, chama-lhe esposa
e, inclinando-lhe o pescoço, reclina-a em suaves penas, como se as [sentisse.
Havia chegado o dia das festividades de Vénus, o mais celebrado
em toda a ilha de Chipre. Atingidas em sua nívea cerviz,
haviam sido imoladas novilhas de recurvos chifres dourados,
o incenso exalava-se no ar quando, tendo-se desempenhado
do dever da oferenda, se deteve diante do altar e, timidamente:
"Se tudo podeis conceder, ó deuses, desejo que seja
minha esposa...", não ousando dizer "...a donzela de marfim",
Pigmalião disse: "uma igual à de marfim".
Dado que a dourada Vénus assistia em pessoa às festividades
em sua honra, percebeu o que pretendiam aqueles votos
e, como presságio de divindade amiga, por três vezes
se acendeu a chama e elevou às alturas a língua de fogo.
Ao voltar, Pigmalião dirigiu-se à estátua da sua amada
e, reclinando-se no leito, beijou-a. Pareceu-lhe estar quente.
Aproxima outra vez a boca e, com as mãos,
toca-lhe também o peito. Ao ser tocado, o marfim
torna-se mole e, perdendo a dureza sob os dedos, cede-lhes,
como a cera do Himeto amolece ao Sol e, manuseada pelo polegar,
se molda em formas diversas e se torna útil pelo mesmo uso.
Enquanto fica espantado e se alegra de modo duvidoso
e receia enganar-se, de novo enamorado, toca outra vez
com a mão o seu desejo. Era um corpo. As veias palpitam
sob o polegar. Então o herói de Pafo pronunciou palavras
plenas de eloquência com que deu graças a Vénus.
Por fim beijou com sua boca uma boca não fingida.
A donzela sentiu os beijos que lhe eram dados e corou.
E, erguendo seu tímido olhar para os olhos dele,
de par com o céu viu o seu enamorado.
A deusa assistiu à boda, que organizou.
E depois de os cornos da Lua se unirem
por nove vezes em círculo completo,
aquela gerou Pafo, de quem a ilha tirou o nome.

Metamorfoses, Ovídio (trad. Domingos Lucas Dias)